Caminhos do Destino

14/01/2021

Degustação Primeiros Capítulos 

Capítulo 1

Sayid

Odeio areia, pensei. O-d-e-i-o a-r-e-i-a!

O vento forte levantava grandes nuvens amareladas, que deslizavam por entre o comboio, como uma espécie de cortina que avançava com o frescor. Em outras épocas, o toque de uma cortina em minha pele seria agradável não só pela maciez do tecido, mas também pelas lembranças de outra vida; uma vida mais feliz, fresca e macia. A vida que eu merecia. A dura realidade era outra: aquela cortina parecia feita de pequenas garras, que arranhavam a minha pele até machucar todo o meu corpo. Todo mesmo. E como eu odiava aquela situação. Sentia os grãos rangendo enquanto apertava os dentes. Com as mãos amarradas, posicionei o lenço imundo sobre o nariz e a boca numa tentativa vã de me ver livre daquela aspereza. Da areia. Da vida.

O dia estava claro; a luz solar se mostrava insuportavelmente ofuscante. Fechei os olhos contra minha vontade. Já tinha desistido havia muito de me localizar. Durante todo o caminho, não vi nada de familiar que pudesse utilizar como ponto de referência. Apenas dunas de areia a perder de vista em direção ao que eu achava ser o deserto líbio. O último oásis ficara para trás havia alguns dias. Perguntava-me por quanto tempo mais ainda viajaríamos, já que a probabilidade de encontrar qualquer coisa - viva - ali era bem remota.

A carroça em que estávamos sacolejava de um lado para o outro enquanto eu sentia as barras daquela jaula nas costas. Éramos quatro prisioneiros, cada um capturado durante a viagem de Mênfis, no Egito, até aquele pedaço de nada, repleto de vento e areia. O primeiro a entrar, um homem baixo, parrudo e que fedia feito um gambá, agora cochilava no canto à minha frente. O núbio havia sido o segundo, um sujeito alto e calado; vestia uma túnica suja que, diferente da minha e dos outros dois, cobria tudo, exceto as mãos. Um lenço também escondia seu nariz e, desde que entrara, não tirou o turbante, deixando transparecer apenas os olhos miúdos e atentos, que me observavam o tempo todo. O terceiro homem, bastante truculento e com uma cicatriz que lhe repuxava o lábio do lado esquerdo, usava o mesmo tipo de túnica grosseira do núbio. Era moreno, com os cabelos escuros, ligeiramente longos e ensebados escapando por baixo do turbante. Pelo aspecto, eu poderia dizer que era sírio. Todos desprezíveis, exceto, talvez, o núbio. Algo em sua postura o tornava singular ali.

Ninguém estava disposto a conversar, nem eu. Nada naqueles homens, desde sua aparência, passando pelas origens ou as roupas, despertava minha curiosidade a ponto de valer a pena perder meu tempo em uma conversa. Apenas aguardávamos chegar ao nosso destino, onde quer que ele fosse.

Após algumas horas, pude observar os contornos das primeiras casas de junco de papiro e madeira. Conforme o comboio avançava, construções de pedra, algumas de dois andares, margeavam ruas estreitas por onde nossa carroça seguia com dificuldade. No centro do vilarejo, barracas com todo tipo de produto, de roupas a animais, tomavam conta do lugar. De forma brusca, senti o corpo ser jogado contra as barras atrás de mim, e um silvo alto e incômodo indicou nossa parada. Uma multidão, um tanto desconfiada e evitando se aproximar demais, cercou a jaula.

- Parece que viramos a atração principal. ­

A voz grave do núbio, falando em egípcio, tirou-me dos meus pensamentos. Sim, nossa jaula atraía mais a atenção do que os animais exóticos dos mercadores ao redor. Agora, nós éramos os animais exóticos. Eu jamais poderia imaginar que, em um ano, minha vida mudaria tanto. Por uma ironia, virei o que um dia havia sido um dos meus objetos de estudo: um animal.

Nada respondi. Apenas sorri com um tanto de amargor e lábios ressequidos.

- Calid.

O núbio se inclinou, estendendo as mãos amarradas em minha direção, as quais apertei com firmeza.

- Sayid.

Calid havia descido o lenço, e eu podia ver o rosto magro, o nariz com base larga e lábios grossos que exibiam um meio sorriso de dentes excepcionalmente brancos. Os cabelos crespos e curtos também se revelavam por baixo do turbante que todos usávamos para nos proteger do sol escaldante.

- Sabe para onde estão nos levando?

- Não, mas, aonde quer que seja, parece que não somos os únicos a caminho.

Apontei com o queixo na direção de outra jaula, que acabava de adentrar a praça onde servíamos de distração às pessoas.

Calid e eu automaticamente voltamos a atenção aos homens que, trajando túnicas e turbantes ornamentados, conversavam em uma roda no centro da praça. A nós, água do cocho dos animais era "gentilmente" servida por entre as barras da jaula em cuias pelo cocheiro. Era um líquido repugnante, mas era aquilo ou nada.

Tentei apurar os ouvidos para identificar o que os homens diziam, mas a multidão barulhenta engrossando ao nosso redor me impedia. Porém, pouco tempo depois, o grupo se desfez. O líder de nossa caravana deu as ordens ao cocheiro de nossa carroça, e logo estávamos em movimento outra vez, deixando o centro da cidade.

Aos poucos, as barracas e construções de pedra foram ficando para trás para dar lugar às intermináveis dunas. Já me preparava para mais uma jornada rumo ao nada, mas, para minha surpresa, logo à frente, uma colina se apresentou. A carroça a contornou e parou na entrada de um túnel, onde outros homens aguardavam. O chefe do comboio os saudou com um forte abraço enquanto riam. Era possível ver os dentes de ouro e colares grossos pendendo do pescoço daquele que parecia ser o mais importante, um sujeito não muito alto, de barba longa e cabelos escuros.

Cheguei a pensar que seríamos enviados para trabalhar na construção de algum templo, contudo, aquele túnel não fazia muito sentido; Calid me olhava com o mesmo ar de dúvida, mas os outros ali pareciam não ter se dado conta de nada. Em poucos minutos, nos retiraram da jaula, tomando o cuidado de nos unir com amarras nos tornozelos.

Até os olhos se acostumarem, caminhei no escuro por uns bons metros, sentindo o sujeito atarracado, que vinha logo atrás, pisar em meus calcanhares várias vezes. Aos poucos, a visão foi se ajustando, e notei as tochas penduradas nas paredes ao longo do túnel surpreendentemente largo, escavado na rocha. A brisa fresca que vinha dele em comparação ao sol inclemente do lado de fora era um grato alívio.

Após alguns metros, paramos na frente de uma cela - de uma jaula a outra -, uma espécie de câmara criada naturalmente e fechada por grandes toras de madeira maciça espaçadas, ladeadas por um portão pesado feito com a mesma madeira, porém de diâmetro menor. Lá dentro, o encarregado, um homem alto e forte com grossas sobrancelhas que formavam uma única linha sobre a testa vincada, nos desamarrou para logo depois sair. Dois guardas, armados com lança e escudo, faziam a segurança do lado de fora. Próximo à grade de madeira, tentei enxergar o que tinha além do caminho percorrido até chegar ali. Uma outra câmara, um pouco mais à frente e do lado oposto, também era guardada por dois homens. Com a pouca luz fornecida pelas tochas, não podia ver se já estava ocupada ou não; além dela, no corredor, apenas a penumbra ia se avolumando.

- Que lugar é este? - sussurrei mais para mim do que para outra pessoa.

- Provavelmente o último que irão ver antes de morrer.

A voz rouca chamou não só minha atenção, mas a de Calid também. Olhamos para o fundo mal iluminado da nossa cela na tentativa de localizar seu dono. Apenas dois pequenos pontos brilharam quando um homem grisalho, com o rosto coberto de rugas e sujeira, deixou seu refúgio para ir em nossa direção. Ele trazia a túnica, outrora imagino que clara, tingida de vermelho e marrom - o sangue já secara havia muito tempo. Os braços, queimados pelo sol, também eram enrugados e repletos de riscos brancos, provavelmente cicatrizes de cortes adquiridos vezes seguidas. O nariz volumoso e vermelho se destacava no rosto de diminutos olhos negros brilhantes. Parecendo se divertir com nosso silêncio confuso, exibiu nos lábios murchos um sorriso amarelo.

- Pessoas ricas apostam e ganham dinheiro sobre gente como vocês. - Vendo nossa cara de espanto, prosseguiu com impaciência: - Lutas. Eles pagam para ver vocês lutarem.

- Luta? Que tipo de luta? - Foi a vez de Calid se pronunciar.

- Até ficar bem machucado ou... morrer. - O velho se aproximou um pouco mais. - Uma vez por ano, Abdul, o sujeito de dentes de ouro, promove um festival de lutas durante uma semana. Ele arrecada o dinheiro dos apostadores e manda seus homens comprarem escravos. O dono do escravo que chegar à final fica com o valor de todas as apostas do dia, fora as que ele ganhou nos dias anteriores.

O velho apontou um dedo torto para um monte no fundo da cela, que passara despercebido na penumbra. Um homem, encolhido contra uma das paredes da câmara, jazia quase inerte. Ele era uma bola de sujeira acumulada, terra e sangue. Pela forma como respirava com dificuldade, não parecia ir muito além daquela noite.

- Quem fez isso? - perguntou Calid, agachado ao lado do homem ferido e o observando com cautela.

- Um lutador que chamam de Sombra. Estão escolhendo a dedo os adversários para que o torneio não acabe antes por falta de escravos.

Ele riu, exibindo por fim um sorriso sombrio. Apesar da debilidade, o velho possuía algo de diferente.

- Há quanto tempo está aqui, velho? - perguntei.

- Uns dois dias. Esperando a hora em que meus filhos vão me tirar daqui. - Ante nosso olhar incrédulo, o velho se apressou a acrescentar: - Mexi com as pessoas erradas na hora errada.

Calid e eu nos entreolhamos com um meio sorriso. Deviam ter batido tão forte no pobre coitado que já estava delirando ao pensar que os filhos poderiam passar por toda aquela segurança.

- Você também acredita que leões voam, velho?

O homem se irritou com as palavras do núbio, resmungando qualquer coisa a qual não dei muita atenção. Era um velho desvairado sem qualquer serventia. Por que perder meu tempo?

Sentei-me com as costas apoiadas nas grades de toras de madeira, imaginando que a morte não seria uma má ideia depois de tudo. Calid fez a mesma coisa, parecendo tão preso em seus pensamentos quanto eu. Ao menos ali a areia não fazia ranger meus dentes.

Capítulo 2

Sayid

Agora, era a claridade que quase me deixava cego. Mesmo usando as costas da mão como proteção, sair da penumbra da cela para o dia claro do lado de fora me fez piscar várias vezes, até conseguir enxergar alguma coisa. Mesmo assim, aquela sensação era uma velha conhecida: areia. De novo. Áspera. Nojenta. Quente. Entrando aos montes por baixo das tiras gastas das sandálias mal feitas, riscando, pinicando. Sensações que ficaram em segundo plano assim que vi onde eu estava: em uma arena.

Ela era impressionante, formada no meio das dunas de antes, algo que eu jamais poderia imaginar. Em formato ovalado, ficava no centro de duas colinas, uma das quais abrigava a cela em que eu havia estado. Nas elevações rochosas, palanques haviam sido erguidos, interligados por passarelas que contornavam uma das extremidades. Homens ricos em seus mantos adornados se amontoavam em cada uma das margens da arena, sobre os palanques, bebendo e rindo, enquanto moças quase despidas circulavam para lhes servir. Em algum lugar, havia o som de instrumentos tocando uma música desconhecida.

Um empurrão me fez avançar alguns metros, sob os gritos impacientes do guarda, gesticulando para que eu caminhasse. Mas para onde? No centro da arena, uma madeira com uma bandeirola amarela assinalava o local ao qual eu deveria ir. Parei ali, sozinho, sem entender nada, mas foi por pouco tempo. Logo, o portão de madeira pelo qual eu havia entrado se abriu uma vez mais e de lá alguém saiu.

Trajando uma túnica sem mangas, encardida e suja - assim como a do velho da cela - e um turbante, a figura caminhou com passos curtos e firmes na areia fofa, até a marca com a bandeirola vermelha, poucos metros à minha frente. Eu tentava dar uma boa olhada no meu oponente, mas ele se mantinha de costas, saudando de forma contida a multidão, que repetia em coro seu nome: Sombra! Sombra! Sombra!

Aquele apelido aguçou ainda mais minha curiosidade, fazendo eu me concentrar ao máximo na análise de meu adversário, a ponto de estreitar os olhos tentando antever o que esperar. Se era tão mortal quanto o velho havia dito, queria conhecer a fisionomia daquele que tentaria tirar minha vida.

Por fim, quando Sombra cessou os cumprimentos à torcida enlouquecida e virou-se em minha direção, quase não acreditei. Apesar da túnica folgada, ele não passava de um rapazote magrelo, como denunciavam seus braços finos. O rosto, igualmente fino e imberbe, estava coberto de sujeira e sangue seco, fazendo com que os olhos grandes se destacassem. Não consegui me conter diante daquela visão grotesca do adversário fatal que me aguardava e comecei a rir, ou melhor, a gargalhar. Aqueles homens abastados realmente acreditavam que um meninote, recém-saído da infância, poderia ganhar aquele torneio? Estariam loucos ou bêbados o suficiente para apostar seu dinheiro nele? Só podia ser uma brincadeira de mau gosto. Lágrimas escorriam de meus olhos enquanto eu apoiava as mãos sobre os joelhos na tentativa de retomar o ar.

Quando finalmente consegui me controlar e voltar à posição inicial, notei o silêncio e os olhares atônitos em minha direção. Até mesmo o pequeno Sombra parecia não entender minha reação e me encarava com toda a atenção. Dei de ombros. Não, eu não teria coragem de lutar contra um rapazote como ele.

Perdido em meu divertimento, não percebi quando Abdul deu o sinal para que a luta começasse nem Sombra se aproximando, não até sentir o soco surpreendentemente forte que jogou minha cabeça para trás. De onde saíra aquele golpe que me pegara desprevenido, eu não sabia. Levei a mão ao queixo dolorido, sentindo o gosto salgado do sangue em minha boca, e o encarei. Os grandes olhos me observaram com intensidade antes de ele desferir outro golpe, dessa vez na altura das costelas, o que me fez ajoelhar, sem ar.

Apoiado em um dos joelhos, eu me preparava para investir contra o rapaz, porém, como se fosse um fantasma, no instante seguinte ele estava atrás de mim e me empurrava com o pé, fazendo-me cair de cara na areia. A multidão ovacionou, e senti a areia entrar na boca e no nariz. Areia! Áspera, irritante. Virei na intenção de golpeá-lo com o pé e jogá-lo ao solo, mas Sombra foi mais rápido e se deslocou até chegar ao meu lado, chutando-me nas costelas repetidas vezes, até que fiquei sem ar. Tentei agarrar o pé que me golpeava e mais uma vez falhei: com um salto, ele se posicionou sobre mim, imobilizando meus braços e desferindo socos em sequência. Minha cabeça rolou de um lado para o outro, a inconsciência se aproximando cada vez mais. Um grito, contudo, fez meu adversário parar e se afastar.

Com mais dificuldade do que eu gostaria de admitir, rolei para o lado e me levantei, observando-o se afastar até a outra bandeirola. Lá, ele vestiu um escudo de madeira que protegia o antebraço, para então empunhar um bastão longo de aproximadamente noventa centímetros e ponta em formato de Y. Olhei para a minha marca: as mesmas armas me aguardavam, embora eu não tivesse notado o momento em que haviam sido colocadas ali.

Com as armas em punho, dirigi-me ao centro da arena, onde Sombra já esperava. Cruzamos nossos bastões, aguardando a ordem para começar a luta[1]. Nós nos encaramos por alguns momentos enquanto a ordem não era alcançada. Notei que o rapazote tinha as mãos envolvidas por uma espécie de luva de couro, porém com os dedos descobertos. Achei aquilo incomum, tanto quanto todo o mais que o envolvia, e tentei entender como alguém aparentemente frágil podia ser tão rápido. Nem tive tempo de reagir quando o sinal foi dado; mais uma vez, levei uma bela surra. Não importava a estratégia adotada, Sombra acabava levando a melhor.

Na segunda vez que nos enfrentamos, no dia seguinte, tentei enxergar um padrão nos movimentos de meu adversário, e uma vez mais fracassei terrivelmente. Ele, de uma forma inacreditável, parecia prever todos os meus movimentos. E, de novo humilhado, voltei para minha cela com hematomas e cortes por todo o corpo. Custava a acreditar que um garoto magrelo era capaz de me dar uma surra daquelas... duas vezes.

- Sombra não teve pena de você, amigo.

Calid, sentado ao meu lado, observava um corte no supercílio, estendendo-me um trapo para estancar o sangramento.

Não respondi, tamanho o meu constrangimento. Eu, um homem feito, sendo humilhado por um garoto! Nem nos meus piores dias, num passado que se transformara no meu presente, havia apanhado daquela forma. O velho, encostado no outro canto da cela, apenas riu, o que me deixou mais enraivecido. Em minha mente, repassei diversas vezes nossas lutas, e nada...

Na terceira vez, enquanto Sombra investia com o bastão de forma ágil, algo em seu antebraço chamou minha atenção. O movimento havia sido muito rápido, de modo que não pude ver os detalhes que queria, porém, em um golpe impensado, consegui imobilizar o rapaz por alguns segundos. Até fiquei surpreso com o primeiro movimento vitorioso após três derrotas, mas afastei aquele pensamento e me concentrei em observar o antebraço protegido pelo pequeno escudo de madeira. Ali, abaixo de uma das tiras que o prendiam, notei uma pequena tatuagem feita a ferro: um semicírculo, a metade de uma ferradura e um arco vazio, sem a flecha. Não pude evitar a surpresa; meus olhos automaticamente pousaram nos de Sombra, que parecia perdido. Mas aquilo durou apenas uma fração de segundo antes de meu oponente me acertar pesadamente com seu bastão, fazendo-me perder a consciência.

Quando acordei, estava de volta à cela. A cabeça latejava sem piedade, como se tivesse sido partida em duas. Fiquei deitado por um tempo, os olhos fechados, relembrando a marca que tanto chamara minha atenção. Havia muitos anos eu não via nada parecido. Jamais passaria pela minha cabeça encontrar alguém com aquela marca, principalmente em um lugar tão distante e naquelas condições. Mas o pior era que algo realmente inexplicável ainda me encucava: apenas mulheres levavam aquela tatuagem. Como poderia um rapazote ter sido marcado? A ideia seguinte me pareceu bastante absurda, beirando o impossível, mas só havia uma maneira de saber...

Tive de ganhar outras lutas, inclusive contra o próprio Calid, golpeando-o violentamente. Quando cheguei à cela e o encontrei combalido em um canto, cuidei de suas feridas como uma forma de pedir desculpas. Mas não havia nada a desculpar; afinal, sabíamos que estávamos ali para entreter enquanto conseguíssemos ficar em pé.

- Esta é uma boa hora para seus filhos aparecerem, velho - provocou Calid, cuspindo sangue enquanto se recostava nas barras da grade.

- Aguarde e verá.

Foi tudo o que o outro disse, ajudando o núbio a se recostar. Obviamente, não acreditávamos naquilo.

Areia. Novamente ela, dançando à minha frente conforme aguardava o sinal de Abdul para que iniciássemos a luta com os bastões. Analisei Sombra com bastante atenção, tentando ver por baixo da túnica folgada. O vento forte fazia suas roupas dançarem sobre o corpo esguio, mas não o suficiente para que eu encontrasse a resposta que buscava. Embora seu punho estivesse protegido pela tabuleta de madeira, pude visualizar mentalmente a imagem da tatuagem sob as tiras. Eu sabia que perderia, até porque o sol contra meu rosto dava vantagem ao rapazote. Meu objetivo naquela luta, porém, era outro.

Quando o sinal foi dado, Sombra investiu contra mim, nossos bastões chocando-se violentamente. Cada vez que eu mudava a estratégia de ataque, ele desviava com enorme velocidade. Eu precisava chegar perto o bastante e com as mãos livres, e só via uma forma de conseguir tal façanha. Deixei que ele me acertasse e me jogasse no chão. Meu bastão voou para longe ao mesmo tempo em que Sombra me prensou ao solo com a ponta forquilhada de sua arma sobre meu pescoço. Não. Eu precisava de uma luta corpo a corpo. Tentei me libertar, mas ele apertava cada vez mais a forquilha, afundando-me na areia fofa. Areia... areia! Era isso! Finquei os dedos no solo e joguei um punhado em seus olhos. O rapaz chegou a se afastar, antecipando meu golpe, mas aproveitei seu desequilíbrio e me libertei, lançando seu bastão para longe. Como esperado, ajoelhou-se sobre mim, pronto para me dar um soco; em vez de impedir o golpe, posicionei as duas mãos espalmadas sobre o peito do meu oponente.

Por um instante, foi como se tudo paralisasse, exceto pela areia voando ao nosso redor, impulsionada pelo vento. Sombra parecia surpreso com meu movimento, o punho congelado no ar, e os olhos arregalados em minha direção. Eu também tentava pensar rápido, mas parecia que meu cérebro simplesmente congelara. Quando aquela ideia cruzara minha mente, havia a considerado estapafúrdia, absolutamente contra todas as probabilidades, e, ainda assim, não via outra solução a não ser testá-la. E, então, nem sequer tive tempo de reagir à série de golpes de Sombra, que fizeram meu dia virar noite.

Capítulo 3

Elara

A porta. Havia muito tempo que eu não a via. Massiva e imponente, ela estava ao alcance de minhas mãos que, espalmadas, deliciavam-se com a textura enrugada e confortante da madeira escura. Ao mesmo tempo em que estava animada, fiquei apreensiva. Estaria trancada? Era tão frustrante quando isso acontecia. Um tanto temerosa, eu a empurrei, sentindo seu peso familiar se deslocar para frente. Suspirei aliviada ao adentrar o quarto banhado pela luz do luar que fluía de forma preguiçosa pela fresta das cortinas, ondulando com a brisa mansa. Caminhei de forma silenciosa até o centro do aposento ricamente adornado com uma cama de dossel a um lado e uma mesa encimada pela cesta de frutas frescas. Próximo à mesa, um jogo de bancos repleto de almofadas sobre as quais o vestido de casamento parecia refletir a luz prateada. Estiquei a mão para sentir o tecido macio sob meus dedos quando um movimento próximo ao terraço logo após as cortinas me chamou a atenção.

- Kynthia? - murmurei, recolhendo a mão que pairava sobre o tecido. - O que está...

Ela não respondeu, apenas apontou para a paisagem além do terraço. De um lado, ao longe, vi um círculo de pedras em meio a uma planície extensa. Um cântico suave se levantava de lá, atraindo-me tal qual a flor atrai a abelha. Havia paz ali, e mais: havia um sentimento de pertencer, de finalmente ter encontrado o meu lugar.

- O norte. Deve ir para o norte. - Uma voz sussurrou em meus ouvidos, trazida pela brisa longínqua; o timbre que eu conhecia tão bem e tanto sentia falta.

Olhei para o lado, buscando a figura altiva e etérea de antes, encontrando apenas a grande figueira. Não estava mais destruída como eu me lembrava, pelo contrário: uma luz dourada se filtrava por seus galhos enquanto pássaros voavam ao seu redor. Senti tanta falta disso tudo.

Uma lágrima desceu quente. Em meio ao fascínio, de algum jeito, o som de uma flecha sendo disparada chegou aos meus ouvidos. Não! De novo, não!

Virei-me na direção de Kynthia a tempo de vê-la cair sobre mim pesadamente. A flecha, fincada em suas costas, levando-lhe a vida. Mais uma vez.

A cena imediatamente desapareceu no momento em que senti o safanão bruto me chacoalhar.

- Acorde logo, seu imundo! Levante-se, verme!

Piscando diversas vezes, demorei um tempo para reconhecer que o local onde eu estava não era o mesmo quarto. Não mesmo. A cela escura recebia pouca luz das tochas penduradas no corredor do lado de fora e um dos guardas, o mesmo que havia me chutado com violência um pouco antes, levantou-me sem cerimônias pelo braço, jogando-me para fora da cela. Tropecei ainda por um bom pedaço enquanto ele me conduzia até o portão de acesso à arena. No escuro daquela caverna, era fácil perder a noção de dia e noite, bem como o passar do tempo. Não sabia quantos dias já estava ali, mas parecia uma eternidade.

Esfregando os olhos, avancei pela areia fofa tentando parecer decidida, mas antes disso precisava despertar daquele sonho. Dele, havia sobrado somente a angústia e o grito entalado na garganta. A saudade, por mais estranho que pudesse me parecer, também oprimia o peito. Ah, Cimineu, quem diria que sentiria saudade de você algum dia, pensei com amargura. Imagens do passado e do círculo de pedra se fundiam em mais um sonho-pesadelo-lembrança que não me abandonava. Ouvia a plateia chamar pelo nome que recebi ali, mas não era o suficiente para me animar. Estava zonza, ainda presa entre a realidade áspera da areia e a maciez onírica. Eu só queria sobreviver, o que tinha feito até agora com bastante sucesso. Sairia viva dali, mas... para onde? Outra arena, talvez? Jurara a mim mesma que, se por algum milagre me visse livre daquele cativeiro, rumaria para o norte. O fato era que, após me concentrar tanto nas lutas dos últimos dias, sentia-me exaurida. Os movimentos não eram mais tão precisos, e agora eu sentia a dor de alguns hematomas dos golpes recebidos daquele lutador, o atlante.

As pessoas ali poderiam não reconhecer, mas eu os farejaria a quilômetros de distância. No primeiro dia em que nos enfrentamos, confesso que fiquei surpresa. Jamais pensei que poderia encontrar alguém como ele nesse fim de mundo. Ao mesmo tempo, tentava descobrir o que o tinha levado até ali. Era um pouco mais alto do que a maioria dos outros e bem habilidoso, talvez tivesse sido um soldado de Atlântida, mas agora trazia mesmo um ar selvagem, descuidado, como todos nós. A túnica grosseira, esfarrapada, estava suja em muitos lugares; os cabelos, compridos e ensebados, não davam pistas de sua cor natural; o rosto era anguloso, de lábios finos encrespados e a pele, bronzeada pelo sol. Onde raios ele havia estado? Atlântida jamais deixaria seus preciosos cidadãos à própria sorte... Aliás, onde estiveram os atlantes no momento em que mais precisamos deles? Balancei a cabeça para me livrar do pensamento incômodo, provavelmente decorrente da alucinação com Kynthia. Agora não fazia mais a menor diferença.

Aquele homem era apenas mais um na minha lista de rivais para sair viva dali. O riso debochado dele no primeiro dia foi o combustível que faltava para a minha ira. Naquele momento, percebi quem ele era: arrogante e presunçoso, como só um atlante poderia ser, e me esforcei ao máximo para acabar com aquela empáfia, confronto após confronto, até a última luta. O golpe desajeitado, suas mãos... em mim! Afinal, que raios havia sido aquilo? Como ele havia descoberto? Eu era tão cuidadosa! Construir a imagem do Sombra custou muito tempo, até que me vissem como uma celebridade, que tivessem medo de mim e me deixassem em paz. Até mesmo os guardas evitavam muito contato comigo. Eu até me divertia ouvindo os bochichos de que teria "parte com algum espírito maligno". Achava graça e, ao mesmo tempo, agradecia porque eram exatamente aquelas crenças que mantinham as pessoas longe de mim e me ajudavam a manter minha verdadeira identidade em segredo. Agora eu tinha outra preocupação: me assegurar de que o atlante não contasse a mais ninguém o que havia descoberto.

E lá estava ele, na outra marca, encarando-me com seriedade. Os cabelos se agitavam um pouco com a brisa e cobriam parcialmente o rosto. Eu estava exausta, mas tinha de vencer. A torcida continuava gritando o nome que recebi, mas eu já não prestava atenção. Aguardava apenas que Abdul sinalizasse o início da luta. Respirei fundo e me concentrei, ignorando tudo ao meu redor, exceto o atlante. Deixei que viesse ao meu encontro dessa vez; respirei fundo, fechando os olhos e, quando os abri, estava pronta. O espectro dele se aproximava de mim um passo antes do próprio homem. Quando a distância permitiu, vi seu espectro desferir o primeiro soco, um gancho de direita, o que me deu tempo suficiente para desviar no momento em que ele realmente o fez. Eu era mais fraca e menor, porém, procurava cansar meus oponentes para chegarmos ao que eu realmente dominava: o Tahtib. E foi isso que continuei a faze até o momento em que não vi mais o espectro do atlante e recebi o primeiro soco.

Por um instante, a arena ficou em silêncio enquanto eu sentia minhas costelas. Os apostadores pareciam não acreditar que eu havia sido atingida. Nem eu, para ser sincera. Como ele havia feito aquilo? Ergui os olhos em sua direção e, por segundos, ele também pareceu perdido. Vi seu espectro novamente e desviei, porém, no segundo seguinte, não pude antecipar seu movimento, e ele me jogou no chão com uma rasteira. Caí de boca na areia, sentindo o gosto áspero entre meus dentes e vi, pelo canto do olho, ele ganhar confiança, exibindo um meio sorriso no rosto, no exato momento em que a trombeta tocou, encerrando aquela etapa. Eu estava enfurecida e caminhei com passos duros, batendo as mãos na lateral do corpo para me livrar da areia, até a marca onde o bastão e o pequeno escudo de madeira me aguardavam.

Ao sinal, iniciamos a luta com nossos bastões e, novamente, não pude ver o espectro do atlante, o que me fez agir "às cegas". Ele mantinha um sorriso cínico enquanto me analisava; eu tentava esconder a insegurança que tomou conta de mim, acentuando-se ainda mais quando o bastão dele me atingiu no estômago. Por sorte, ainda não havia comido naquele dia, do contrário...

Revidei como pude, ainda sentindo o golpe, quando ele, com o auxílio de seu bastão, jogou-me no chão outra vez, ajoelhando-se em cima de mim. O sorriso ainda mais largo.

- Te peguei - disse em seu idioma.

Não tive dúvidas: virei o rosto e mordi-lhe o antebraço, fazendo-o urrar de dor até se desequilibrar. Empurrei-o e levantei-me no mesmo instante em que notei uma algazarra fora do comum nos palanques ao redor. O atlante, ainda com a mão sobre a mordida, ajoelhou-se e pareceu notar o mesmo que eu: homens, muitos deles, vindos sabe-se lá de onde, haviam invadido os palanques e derrubado o portão de acesso à arena. Os guardas de Abdul tentavam contê-los, mas pareciam em franca desvantagem. Alguns tombavam para fora das plataformas, caindo mortos sobre a arena. Mas, afinal, o que era aquilo?

- Venha. Vamos!

Pegando uma espada curva caída na areia e jogando outra para mim, o atlante me arrastou pelo pulso para perto da passarela mais distante. De um salto, alcançou-a e estendeu a mão para me ajudar a subir.

- Faça seu truque. Vamos precisar se quiser sair viva daqui - resmungou ele no momento em que um dos guardas investiu em nossa direção.

Eu queria me fazer de desentendida e, ao mesmo tempo, queria continuar viva. Tentei soltar seus dedos de meu pulso, mas ele mantinha um aperto de aço em volta dele.

- Agora! - gritou o atlante no momento em que o primeiro guarda investiu contra ele.

Atenta, observei o espectro do guarda se adiantar ao seu próprio movimento, gritando para o atlante as instruções. Os sons metálicos das lâminas chocando-se e o chão oscilando sob nossos pés enquanto as pessoas corriam ou lutavam chegavam até mim em segundo plano. Precisava me manter concentrada.

Após eliminarmos o primeiro guarda, o atlante me arrastou pelo braço na direção da saída enquanto desviávamos das lutas que se desenrolava ao redor. Outro guarda surgiu no caminho e, uma vez mais, gritei as instruções até ver o adversário caído no chão.

Ele me puxou novamente pelo caminho e nos embrenhamos pelos corredores ladeados por painéis de madeira, até chegarmos a uma bifurcação. Ele pareceu indeciso por um momento, até que pude ver alguns segundos à frente.

- Por ali! - gritei, indicando o lado direito.

Mal havíamos virado em uma das curvas, eu já estava preparada para o golpe do próximo guarda que nos aguardava. Em três movimentos, eu o derrotei e pudemos seguir em frente. Após o labirinto de corredores, chegamos a um pátio amplo onde cavalos, mulas e burros se agitavam com a confusão ao redor. Ao pararmos ao lado de um cavalo, senti o pulso livre enquanto o atlante desamarrava o animal. Aproveitando o momento de distração, comecei a correr para longe. Finalmente poderia ir para o norte em busca do tal círculo de pedras! Sim, após um longo tempo, eu senti a esperança tomar conta de mim, esvaindo-se no momento seguinte. Mal avancei alguns metros quando um puxão pela gola da minha túnica me tirou do breve devaneio. Quem nasceu para ser cativo, nunca seria livre.

- Juntos temos mais chances no deserto.

Senti seu hálito em minha nuca enquanto ele me arrastava para o animal que havia desamarrado, ajudando-me, ou melhor, obrigando-me a subir na garupa enquanto ele próprio subia à minha frente.

Já pensava no golpe que usaria para atingir o atlante quando previ a chegada de mais dois guardas da arena. Bufei, frustrada. Uma coisa de cada vez, pensei. Primeiro, cruzar o deserto. Depois...

A passos rápidos, o atlante guiou o animal para fora e logo estávamos de frente para as intermináveis dunas douradas.

- Qual lado? - perguntou, olhando de esguelha em minha direção.

Concentrei-me, porém não vi nada além das dunas. Aquele era um bom e um mau sinal: bom, porque não havia guardas em nosso encalço, pelo menos por alguns minutos; mau, porque teríamos apenas a companhia do deserto ao nosso redor, qualquer que fosse a direção escolhida.

Após ouvir minha resposta, o atlante instigou o cavalo a seguir em frente, informando que havia um vilarejo próximo onde poderíamos nos alimentar. Não me opus. Estava preocupada com duas coisas: certificar-me de que, de fato, não seríamos seguidos e conseguir me livrar daquela companhia indesejada o quanto antes.

Cavalgamos por algumas horas sob o sol inclemente; meus braços, expostos pela túnica sem mangas, ardiam. Para protegê-los um pouco, abracei a mim mesma e me escorei às costas de meu companheiro de viagem, que, de tempos em tempos, perguntava-me se via alguém nos seguindo e a resposta era sempre a mesma: não. Nada além de dunas e mais dunas.

A uma determinada altura de nossa jornada, o corpo todo doía por ficar no lombo do animal; a boca já estava ressecada e eu nem sequer conseguia me concentrar direito. Aliás, fazer aquilo por horas a fio após os dias de luta e pouca comida estava esgotando minhas forças, mas eu não queria demonstrar isso ao estranho. Sempre procurava incutir o medo nas pessoas, pois aquilo as mantinha afastadas de mim, como toda aquela superstição em volta do Sombra. O atlante, porém, parecia não se intimidar, e isso me fazia permanecer em alerta o tempo todo.

Por fim, ele resolveu parar à sombra de uma das dunas, para meu alívio. Tombei na areia fofa e quente, esticando o corpo e sentindo-o dolorido em cada centímetro enquanto ele vasculhava o alforje. Vi quando jogou um odre em minha direção e o peguei no ar antes que me acertasse em cheio. Ele deu um sorriso de lado, talvez pensando que eu tinha usado meu "truque", mas havia sido um simples ato de reflexo. Tomei alguns poucos goles de água, o suficiente apenas para umedecer os lábios e a garganta, afinal não tinha certeza de quanto tempo ainda teríamos pela frente até chegar ao próximo vilarejo. Vi que meu companheiro de viagem fez o mesmo, despejando um pouco na mão e servindo ao nosso cavalo. Umedeci o lenço imundo de meu pescoço e passei-o pelo rosto e nuca na tentativa de me refrescar com o vento quente soprando de forma constante.

- Então, como funciona esse seu truque? - indagou ele, sentando-se ao meu lado.

- Truque... - repeti com certa amargura.

Está mais para uma maldição, pensei. Ele me encarou com atenção enquanto eu tomava mais um gole lento de água. Pigarreei e engrossei a voz, tentando ignorar que ele sabia minha verdadeira identidade.

- Apenas adivinho padrões.

- Padrões?

O atlante arqueou uma sobrancelha em minha direção.

- Sim, padrões. Você sabe o que é, não é? Sei que em Atlântida vocês costumam estudar isso.

Agora, sim, ele me encarava intensamente, porém, o sorriso presunçoso havia sumido, dando lugar a uma expressão de espanto. Eu acertara em cheio. Agora, faltava descobrir por que ele estava ali...

Estiquei-me outra vez na areia, colocando um dos braços em cima dos olhos e mantendo o outro sobre a espada presa no cinto de minha túnica.

- Como eu disse, padrões.

Aquele sorrisinho era contagiante, e, com ele, dei por encerrado o assunto. Pelo menos, achei que havia encerrado.

- Ouvi falar de gente como você. - Ainda que involuntariamente, prendi a respiração. O silêncio caiu entre nós, interrompido apenas pelo vento soprando e alguns grunhidos de nosso cavalo. Havia algo no tom de voz dele que me perturbou. - Que usa as crenças das pessoas para enganá-las.

Eu o sentia me observar, esperando alguma reação de minha parte. Dessa vez, senti o corpo enrijecer e os dedos apertarem o cabo da espada, em alerta. Oh, Deusa, por favor, não me faça ter de matá-lo! Não quero continuar a jornada sozinha neste deserto!

- Mas o que realmente me intriga é como uma amazona veio parar num lugar como este.

Não pensei duas vezes antes de voar para cima do atlante, derrubando-o sobre a duna, a espada curva pronta para lhe cortar o pescoço. Tentei prever seus movimentos, mas o cansaço cobrou seu preço, e ele me derrubou, jogando a espada para longe. Tentei me livrar, meu turbante voando, e, se a situação já era bem ruim, só ficou pior com os cabelos cobrindo o rosto. De algum jeito, o atlante me prendeu ao chão com o peso do próprio corpo, os punhos acima da cabeça com apenas uma mão. Que humilhação!

- Quer se acalmar? Não quero te machucar! - gritou ele entredentes enquanto eu me debatia. - Pare com isso! Só quero a sua ajuda!

Parei por alguns segundos, não porque quisesse ouvir, mas porque estava cansada, e encarei seus traços rudes, notando o nariz aquilino e os exóticos olhos cor de mel. O calor, prensada entre a areia quente e o peso de meu adversário, era de derreter os miolos; ao mesmo tempo, sentia-me estranhamente confortável e sonolenta.

- Preciso falar com a rainha das amazonas, mas para isso tenho que passar pela guarda sem ser morto.

- E você acha que sou o seu passaporte? - indaguei, começando a ficar incomodada com aquela situação toda. Ele acenou positivamente, o que me fez rir, deixando-o confuso e fazendo-o se sentar ao meu lado, liberando-me. - Tudo o que você vai conseguir estando comigo é morrer da forma mais lenta e dolorosa. - As palavras saíram amargas enquanto me levantava e caminhava em direção ao cavalo. Não tinha a menor intenção de colocar os pés de volta em suas terras enquanto vivesse. - Elas e eu não temos uma relação muito boa.

Com uma agilidade espantosa e com o cansaço cobrando o preço sobre mim, o atlante segurou meu braço que acabara de guardar o odre no alforje, fazendo-me virar bruscamente em sua direção e prendendo-me entre ele e o cavalo.

- E seu eu lhe desse algo de seu interesse?

- Você não tem nada que possa me interessar, atlante.

A não ser distância, pensei.

Ainda nos encaramos por alguns segundos, até que o cavalo avançou alguns passos para o lado, dando-me a chance de sair. Fui até o local em que meu turbante caíra, desenterrando-o e retirando o excesso de areia. Começava a recolocá-lo quando suas próximas palavras me fizeram congelar no lugar.

- E se eu te entregasse a Pedra do Amanhã?

- E-eu... não sei do que você está falando. - Havia me esforçado para manter o tom de voz estável, mas falhei terrivelmente.

- Tem certeza, sacerdotisa?

Gelei com aquela menção. Parecia que aquela tinha sido uma outra vida.

- Não sei o que Tarith teria a ver com essa conversa.

O sorriso do atlante agora se assemelhava ao de um lobo e aquilo fez com que arrepios corressem espinha abaixo. Os ombros estavam tensos, imobilizando-me naquele lugar.

- Com tantas cidades, deuses e templos espalhados por aí, acredita realmente que apenas Tarith tinha uma sacerdotisa? - Ele se aproximou um pouco mais e sussurrou em meu ouvido: - Nunca mencionei de qual sacerdotisa estava falando, Folha de Lotus.

O frio da espinha se espalhou pelas minhas entranhas e parecia que um bloco de gelo havia se formado em meu estômago. Como pude ser tão estúpida, entregando-me daquela maneira? Precisava dele para sobreviver ao deserto, mas a mão, mais do que depressa, desembainhou a espada, pronta para acertá-lo. Ele arrumava o arreio do cavalo e, sem que eu pudesse prever seu próximo movimento, jogou-me ao chão, lançando minha espada para longe. Eu tinha de eliminar aquele atlante ou logo todos saberiam sobre mim. Se eu tivesse a pedra e o oráculo me permitisse, poderia ver o futuro, mas sem ela, ainda fraca e em pânico, o que me restava era tentar me livrar dele e retomar a espada.

- Pare com isso! Pare!

Não parei. E ele também não. Lutamos e rolamos pela areia até que, sem forças para atacá-lo às cegas, ele acabou imobilizando-me, de novo, prendendo-me à areia com o peso de seu próprio corpo.

- Escute! Não vou te fazer nenhum mal. Apenas preciso que vá comigo até a terra das amazonas e, depois de resolver meus assuntos em Atlântida, lhe entregarei a pedra. - Ele se sentou pesadamente na areia ao lado, as pernas inclinadas, ligeiramente abertas, os braços apoiados sobre os joelhos. Parecia cansado. - Como você, também não sou bem-vindo em minha terra.

A cabeça dele agora pendia para frente. Embora ainda desconfiada, havia verdade ali, afinal, o que mais poderia explicar as condições em que ele se encontrava? Atlantes não desprezavam seus companheiros, menos ainda os deixavam à própria sorte. Sentei-me ao seu lado por poucos segundos antes de, discretamente, recuperar minha espada. Achei que o movimento passaria despercebido, mas o atlante viu e um meio sorriso despontou ao se levantar e esticar a mão para me ajudar a fazer o mesmo.

- A propósito, me chamo Sayid - disse ele, ainda segurando em minha mão.

Apenas assenti e seguimos para o cavalo, preparando-nos para uma nova jornada. Saí daquela arena decidida a seguir para o norte em busca do círculo de pedras, mas a possibilidade de ter a Pedra do Amanhã em minhas mãos mais uma vez me abalou. O poder de ver o futuro amplo, o poder de ver o que mais ninguém poderia... os ganhos que a pedra me traria, uma vida mais confortável. Sem arenas. Sem fome. Sem lutar pela vida a cada dia. Era por demais tentador. De repente, a ideia de voltar à tribo das amazonas nem parecia tão repugnante. Não se a recompensa fosse a pedra. Eu poderia desconfiar de qualquer um que me fizesse tal oferta, mas não temia ser enganada pelo atlante. Por mais falhas que pudessem ter, uma coisa sobre eles era certa e razão de seu orgulho: atlantes não mentiam. Sayid não estava mentindo. O que o tornara um exilado de sua própria cidade era o que realmente me intrigava. Eu poderia prever o futuro de forma ainda mais poderosa com a Pedra do Amanhã, mas o passado permanecia uma incógnita.


Capítulo 4

Sayid

Os contornos do oásis[2] finalmente surgiam à frente, o que me deixou um pouco mais tranquilo. Já viajávamos por horas a fio, e o corpo começava a reclamar. Embora o silêncio houvesse sido nosso companheiro desde a última parada, minha cabeça fervilhava, revivendo os últimos acontecimentos. Ainda na arena, enquanto eu tentava analisar a forma como Sombra se movimentava, o mais lógico, claro, era que ele observasse e agisse estabelecendo padrões. Um determinado ataque, por lógica, levaria a um revide dentro de um pequeno círculo de probabilidades. Estava convicto disso até o momento em que agi por impulso, quando enxerguei a marca das amazonas, e o peguei desprevenido. Ali, sim, encontrei um padrão... para mim. Contra todas as probabilidades.

Custei a acreditar em minhas próprias ideias: uma mulher que parecia prever o futuro. Em toda minha vida havia ouvido falar de apenas uma pessoa com aquela capacidade e que, após o ataque feroz a Tarith, duvidava muito pudesse ter sobrevivido. Era absurdo, ilógico, eu sabia, mas tinha de tentar e, assim, fui lançando isca após isca para ela, até o golpe que enterraria minha sanidade ou confirmaria minhas suspeitas: joguei a palavra sacerdotisa, sem muitas expectativas. Vi como seu corpo ficou tenso ao ouvir essa menção, mas a resposta que ela me deu era a certeza de que eu precisava. Estava frente a frente com a sacerdotisa de Tarith, Folha de Lotus.

Atlântida acreditava em um mundo onde a lógica e a ciência imperavam, até o surgimento da sacerdotisa. Lembro-me do conselho reunido vezes sem fim para debater como era possível uma mulher prever o futuro e trazer a prosperidade a uma cidade sem importância como Tarith. O veredito era que ela não passava de uma charlatona. Porém, ainda que usasse algum tipo de truque, contra os fatos não se carecia de mais nada: aos poucos, os antigos aliados de Atlântida passaram para o lado de Cimineu, o rei de Tarith. Até mesmo o fornecimento de Atlântida se viu ameaçado ante a preferência de nossos fornecedores pelas terras da sacerdotisa. A ruína era inevitável, não apenas para Tarith.

De tempos em tempos, perguntava à sacerdotisa se estávamos sendo seguidos. Estava intrigado, porém, pelo de fato de que aparentemente ela podia prever o futuro poucos minutos à frente... e só. O que acontecera com seu dom? Seria apenas uma lenda? Qual era o papel da Pedra do Amanhã? Havia inúmeras perguntas sem resposta, mas sabia que não poderia despejar tudo de uma vez ou a afastaria, e, no momento, estava mais preocupado em garantir que ela me acompanhasse até as amazonas do que qualquer outra coisa. Um ano antes, eu jamais poderia imaginar que dependeria de alguém com habilidades que ofendiam a lógica, o bom senso e a razão para atingir meu objetivo.

- Precisamos arrumar comida, bebida e trocar de cavalo - falei enquanto percorríamos a trilha por entre a vegetação verde, obtendo um muxoxo como resposta.

O caminho margeado por palmeiras derramava uma sombra mais do que bem-vinda sobre nós, e não demorou muito para que chegássemos a uma região de mata rasteira, à beira de um lago. Folha de Lotus nem sequer esperou chegarmos mais perto da margem. Desceu imediatamente com um salto e se lançou sobre a água, ora tomando-a, ora jogando-a sobre a nuca e as costas. Parei nosso animal logo ao lado, e ele também se inclinou para tomar água. Eu mesmo me agachei à beira do lago, vendo a sacerdotisa deitando-se na margem, mãos e pernas afastados, desfrutando do frescor que só um bom banho poderia proporcionar. Senti saudades de Atlântida e de suas fontes de água cristalina.

- Como é bom não sentir areia grudando em todos os lugares.

Suspirou, sentando-se e torcendo o lenço que trazia no pescoço. Retirando o turbante, ela o lavou nas águas de cor esmeralda; os cabelos escuros caíam em ondas pelas costas. Sem a sujeira e as marcas de sangue, pude contemplar suas feições, não mais como Sombra, mas como a mulher que era. Agora, não havia mais os traços do rapazote magricela, mas os de uma bela mulher de pele cor de canela com expressivos olhos escuros. Os mesmos olhos grandes de antes em um rosto oval, de lábios extraordinariamente delicados. Ela era diferente de tudo o que eu já tinha visto em Atlântida, onde a grande maioria das mulheres era alta e pálida. Como alguém tão miúdo como a sacerdotisa conseguira sobreviver em condições tão severas era outro enigma. Apenas mais um que a envolvia e aguçava minha curiosidade. Certamente gostaria de registrar todas as minhas impressões e descobertas em meu diário... se eu ainda o tivesse.

- Não vai se banhar?

- Estou bem assim - respondi, permanecendo agachado na margem, próximo a ela, limitando-me a jogar um pouco de água no rosto e na nuca.

A sacerdotisa apenas balançou a cabeça positivamente, olhando para o lago de forma pensativa.

- Deveria aproveitar. Você está precisando de um banho tanto quanto eu. Pelo menos para limpar seu ferimento.

Ela gesticulou para o local da mordida, ainda coberto por sangue seco.

- Já disse. Estou bem assim.

Achei que isso encerraria o assunto, mas, no instante seguinte, senti uma borrifada de água no rosto. Em contato com a pele quente, ela parecia extremamente gelada. Outros se seguiram enquanto eu levantava os braços na tentativa de me defender.

- O que pensa que está fazendo? Pare com isso!

- Pare com isso! - zombou ela, engrossando a voz. - Vocês, atlantes, são insuportavelmente mandões, mal-humorados e acham que são donos de tudo, mas adivinha? Não estamos em Atlântida. Aqui você é só um escravo fujão. Aproveite os poucos momentos de liberdade. A água contém muitas propriedades; uma delas, a de renovar as energias.

Com isso, ela despejou uma mão cheia de água sobre minha cabeça. O líquido escorreu pelo rosto e espinha, deixando-me arrepiado e grato pelo alívio de sentir um pouco da areia impregnada na roupa e na pele ser removida.

Ela acabava de pegar mais um pouco de água com as mãos em concha e se preparava para despejar sobre minha cabeça quando interrompi o gesto, apertando fortemente um dos pulsos enluvados.

- Não tem medo que eu a engane ou a mate?

- Minha intuição me diz que você não faria uma coisa dessas. Ou, em termos "atlantes", se me matar, não chega às amazonas. Parece-me ilógico.

- Posso estar mentindo.

Eu a encarava de perto, os olhos grandes dela presos nos meus.

- Não está.

- Como você pode estar tão certa?

- Primeiro, você é um atlante e sei que se orgulham de nunca mentir. E segundo, você certamente não compreende, mas eu, como uma sacerdotisa ligada à Mãe Terra, possuo um sexto sentido. Raramente me engano.

- Esta pode ser uma das vezes.

Sorri com desprezo e ignorei de forma proposital a primeira sentença. Sentia um prazer estranho ao desafiá-la. Alguém fisicamente tão inferior a mim certamente se amedrontaria, mas não ela. Seu disfarce como homem havia sido eficaz. Enganara quase todo mundo. Mas o que a fizera se vestir assim? Sombra era uma farsa, mas quem era a mulher que teve essa ideia? Folha de Lotus continuava encarando-me.

- Não é. - Ela farejou o ar e, depois, tampou o nariz. - Você está fedendo.

- Como se você cheirasse a flores - protestei, sem obter qualquer resposta.

Então ela se afastou, voltando a se sentar na beira da água, passando o lenço molhado sobre os braços. Sentei-me e retirei o lenço de meu próprio pescoço, fazendo o mesmo que ela, ainda que de forma relutante. Observei-a de soslaio, o fantasma de um sorriso fazendo os meus lábios se curvarem ligeiramente para cima. Intuição! Aquilo era para tolos. Não havia bases científicas que provassem o que ela dizia. Nossos acadêmicos já haviam se debruçado sobre o tema anos antes, sem chegar a qualquer conclusão que corroborasse sua existência. Energias? As únicas que conhecíamos eram a do sol e a do vento. Aquela sensação reconfortante que eu passava a sentir ao torcer o lenço molhado sobre a própria cabeça era bem física, devido ao calor. Nada mais.

Sem que percebesse, acabei desmaiando ali mesmo, perto da margem do lago. Quando acordei, o sol já começava a se pôr e uma brisa fresca, quase fria, começava a soprar. Ao abrir os olhos, deparei-me com uma fogueira, porém, nenhum sinal do cavalo ou da sacerdotisa.

- Que porcaria!

Levantei-me um pouco tonto do sono e comecei a cambalear pela margem, observando as pegadas do cavalo. Em um momento tão importante, como pude ter pego no sono e deixado a sacerdotisa sozinha? Que estupidez! Enraivecido, chutei uma pedra para longe, amaldiçoando-me. Era óbvio que ela fugiria na primeira oportunidade. Eu, sendo passado para trás por alguém como... ela! Todo aquele papo de "energias da água" e intuição só reforçavam como era esperta em manipular as pessoas.

Andava de um lado para o outro na margem, passando as mãos em desespero pelos cabelos quando um movimento sutil na vegetação adiante chamou minha atenção. Da penumbra da floresta de palmeiras, vi a silhueta de um cavalo castanho, bem diferente do escuro de antes. Ele também tinha uns arreios exóticos e se encaminhava lentamente em minha direção. Tão logo deixou a sombra das árvores, eu a vi. Folha de Lotus havia prendido os cabelos em uma trança lateral, quase até a cintura, embora ainda vestisse a túnica larga de antes, porém, bem mais clara. A mesma faixa escura estava atada à cintura, de onde pendia a espada curva que havia roubado na arena. Vendo-a montar o cavalo com elegância e destreza, não tive dúvidas de que ela havia sido uma amazona.

- Que bicho te mordeu? - indagou ela, parando a montaria ao meu lado e analisando-me de alto a baixo antes que um sorriso presunçoso aparecesse. - Achou que eu tinha ido embora, não é?

Com delicadeza, ela esporeou o cavalo, fazendo-o seguir na direção da fogueira, enquanto eu corria ao seu lado, na tentativa de acompanhá-la.

- Onde você estava? Que cavalo é esse?

Ignorei completamente o sorriso divertido que ela me lançava, fechando ainda mais o semblante. Ela estava zombando de mim.

- Enquanto você dormia, fui atrás de algo para comermos e me deparei com uma tribo do povo do deserto a pouca distância daqui. Troquei nosso cavalo e ganhei algumas coisas a mais.

Ela ainda mantinha aquele sorrisinho que me dava vontade de arrancar com a ponta da espada. Estava irritado: comigo e com ela, pelo fato de ter me feito pensar que havia fugido... e também por ter voltado.

- Ganhou? Como se alguém fosse lhe dar algo de graça. O que você fez? - Ela desmontou, retirando um animal morto que vinha amarrado na traseira do cavalo, e se aproximou da fogueira. - O que você fez? - indaguei, suspendendo-a pelo braço e vendo seus olhos brilharem na escuridão que avançava.

- Ganhei de forma justa. No jogo - respondeu a sacerdotisa entredentes. - Satisfeito?

- Uma mulher? No meio de uma tribo do deserto? Não precisa ser muito esperto para saber que eles nunca te deixariam vir embora.

- Não, mas se eles não souberem que sou mulher...

Folha de Lotus me mostrou a faixa do turbante que trazia presa à trança.

- Foi fácil prever as próximas jogadas. Só não quis abusar muito da sorte para não causar confusão.

Onde estava o ganhar de forma justa?

- Não te ocorreu nem por um único momento que se os guardas de Abdul chegarem até aqui, facilmente chegarão até nós?! - Explodi, apontando para as pegadas deixadas pelo animal.

- Mas precisávamos comer! E de um novo cavalo, mais descansado.

Nem sequer ouvia suas justificativas, irritado como estava.

- Estúpida. Você foi estúpida e imprudente - falei com raiva enquanto fuçava dentro do alforje até encontrar um manto que amarrei no arreio traseiro, de forma a apagar os próximos passos do animal.

Num gesto brusco, peguei Flor de Lotus no colo, ignorando seus protestos, e a lancei sobre a sela como se fosse um saco de batatas, montando na sequência.

- Mas... não vejo os homens de Abdul - justificou-se com um muxoxo um tanto incomum, mas ao qual não dei muita importância; estava mais preocupado em apagar nossas pegadas e sair dali o quanto antes.

Não respondi. Estava bastante óbvio que ela podia antecipar minutos à nossa frente, mas a noite seria longa. Não estava disposto a me arriscar com algo que pouco entendia, como aquele dom estranho.

Avançamos para dentro da floresta de palmeiras, até que parei o cavalo em um local mais afastado, protegido por uma pedra grande. Não fiz menção de acender uma nova fogueira, tampouco o fez Folha de Lotus. Não podíamos atrair a atenção de ninguém com o fogo e, assim, novamente rumei para os alforjes para verificar o que mais ela havia trazido. Encontrei alguns pães e tâmaras que compartilhamos em silêncio, sentados ali, encostados à rocha.

Detestava aquele ar zombeteiro, mas descobri que o seu silêncio era ainda mais perturbador. Não suportando mais, limpei a garganta, buscando em minha mente algum assunto que pudesse fazê-la falar.

- Algum sinal dos guardas? - Ela balançou a cabeça negativamente. - Isso é bom. - Silêncio. - Acredito que estamos no caminho de Mênfis. Lá teremos de achar alguma forma de conseguir transporte para o território das amazonas. Barcos egípcios costumam percorrer além do Nilo para fazer comércio com as nações do norte.

A sacerdotisa nada disse nem pareceu prestar atenção ao que eu havia dito. Aquilo me deixou seriamente preocupado com a possibilidade de que ela não quisesse mais seguir comigo. Precisava pensar em algo depressa para ter certeza que ela não me abandonaria.

- Seria ótimo se você estivesse com a Pedra do Amanhã. Assim, poderíamos descobrir exatamente o que fazer para conseguirmos as passagens.

Observei-a com a visão periférica e vi quando sua postura se tornou rígida antes de levar o último naco de pão à boca. Sem dizer uma única palavra, ela se levantou e foi até o cavalo, retirando outro manto com o qual se enrolou. Deitou-se, encolhida, a uma certa distância de onde eu estava.

- Devíamos dormir próximos para nos aquecer durante a noite.

- Prefiro morrer congelada.

- Deixe de ser teimosa. Pode ficar doente.

- Já disse que prefiro morrer congelada.

Ela parecia resoluta, de costas para mim, dando a conversa por encerrada. Após recuperar o manto que havia prendido ao cavalo, enrolei-me nele e encostei-me novamente à pedra.

- Fico de guarda primeiro.

Não recebi resposta. Encarei o céu sem nuvens, perdendo-me em pensamentos de tudo o que acontecera naquele dia. Amanheci um escravo prestes a morrer em uma batalha na arena e, agora, contemplava as estrelas em um oásis no meio do deserto. Contra todas as probabilidades.

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[1] A descrição dessa luta faz referência à tahtib, uma espécie de esgrima no Egito antigo (N. A.).

[2] Oásis de Siuá (N. A.). 

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Espero que esta pequena amostra tenha deixado você com gostinho de quero mais! :-D

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